Por que o Trabalhismo e a Quarta Teoria Política são incompatíveis e inimigos ideológicos? “— Uma crítica trabalhista a “nova” moda reacionária.”

Nelson
38 min readApr 30, 2024

Por: Daniel Albuquerque.
Revisão: Cíntia. X. Dias.

Introdução:

Aqueles que apenas reagem em negação contra a pressão da cultura de massas externa são inequivocamente pautados por esta, e estão mais ligados ao sistema que dizem combater do que quem de fato propõe um caminho nacional autêntico e orgânico para superação dessas pautas. Antes de serem solução para os problemas que vivemos, a existência destes é, na realidade, um sintoma causado por anos de dominação do neoliberalismo, seja com a roupagem que for, da sociedade do espetáculo, e da crescente individualização e criação de uma sociedade narcísica.

Esse é só mais um dos exemplos da importância e centralidade da “Questão Nacional”, observada por um pensamento socialista, em nosso período histórico. Exatamente para ampliar o entendimento sobre o tema no campo da esquerda nacionalista, este presente artigo visa demonstrar a profunda crítica à Quarta Teoria Política do ponto de vista do Trabalhismo Brasileiro.

O que é a Quarta Teoria Política do ponto de vista trabalhista?

“Se um cavalheiro brasileiro ou estrangeiro
Só vive falando em Olavo ou em Dugin,
Eu vou me desviando
Que esse cara está bancando
O quinta-coluna pra cima de mim.

Releitura de trecho da música “Sai quinta coluna”
Antônio Nássara · Eratóstenes Frazão, 1943.

A Quarta Teoria Política é uma visão de mundo reacionária que prega a criação de “uma nova ideologia política”, em um suposto sincretismo entre o que o seu criador (o filósofo russo Alexander Dugin) elenca como as “três teorias políticas campeãs da modernidade”: o liberalismo, o socialismo e o fascismo. Essa “nova ideologia política”, segundo seu autor, mira “acabar com a modernidade”.

Contudo, tudo indica que não se trate de um impulso progressista de superação quanto ao que esta tem de pior, mas um esforço retrógrado para um período bem anterior ao Iluminismo. Período pregresso a todas as conquistas da própria modernidade, mirando um caminho divergente para um passado em que a classe social dos pensadores do início do século XX em que tal visão de mundo se baseia (aristocracia, senhores de terra e a classe média de certos países) viviam a mais profunda decadência moral e intelectual e sentiam haverem sido retiradas do jogo político pelo liberalismo e pelo socialismo, ambas ideologias fruto de partes do legado da modernidade.

Tal visão de mundo está intimamente relacionada com a forma pela qual o autor pensa as Relações Internacionais e, particularmente, em sua interpretação do conceito de multipolaridade na distribuição do poder político entre as nações.

Não abordaremos as piores citações diretas de autores de tais teorias, pois não consideramos que seja de bom-tom, visto que a intenção desse presente livro não é a de causar o choque ou o espanto e muito menos mero denuncismo. Contudo, cabe destacar de forma clara que Alexander Dugin baseia boa parte de seu pensamento, além de misticismo e esoterismo, no estudo do fenômeno do surgimento do fascismo na Europa do século XX, portanto, conhece profundamente autores que organizaram intelectualmente tal movimento e o pensamento de cada um destes.

Além disso, os autores que mais influenciam o pensamento de Dugin são o filósofo Martin Heidegger, o fascista espiritual Julius Evola e o esotérico René Guénon. Partes do pensamento de tais respectivos pensadores, articulados com o modelo e a práxis política e de propaganda do nacional-bolchevismo e do strasserismo, formam o núcleo duro da atuação da Quarta Teoria Política.

Tal quimera bisonha (diferente de boa parte do movimento neo-nazista no globo que se fundamenta no conceito dialético Heideggeriano de “dasein”) vence a barreira da particularidade metafísica e com isso gera um princípio normativo universal que, supostamente, seria particular em cada local do globo, sem perder, contudo, uma ligação com a matriz originária de seu pensamento, tornando se com um movimento internacional de extrema-direita com uma agenda distinta em princípios.

Outrossim, por se basear no ideário de matriz filosófica irracionalista e no método de análise duvidoso de um decadente membro da aristocracia do sul da Itália (o fascista espiritual Julius Evola), tal movimento de extrema-direita tem um caráter culturalista, identitário, pois não se volta para pura violência ligada ao racismo biológico, mas sim para o critério da cultura, identidade e de ethos. Exatamente por isso a Quarta Teoria Política proposta por Dugin se enquadra enquanto uma das teorias da pós-modernidade

“E é aqui que os novos prospectos se abrem para a Quarta Teoria Política. Aquele tipo de pós-modernidade que está atualmente sendo realizada na prática, a pós-modernidade pós-liberal, cancela a lógica estrita da própria modernidade — após o objetivo ter sido alcançado, os passos para alcançá-la perdem o sentido. A pressão da concha ideológica se torna menos rígida. A ditadura das ideias é substituída pela ditadura das coisas, senhas de login e códigos de barras.

Novos buracos estão aparecendo no tecido da realidade pós-moderna. Como a terceira e segunda teorias políticas, concebidas como uma versão escatológica do tradicionalismo, uma vez tentaram “colocar uma sela na modernidade” em sua luta com o liberalismo, a primeira teoria política, hoje há uma chance de conquistar algo análogo com a pós-modernidade, usando esses “novos buracos”, em particular. […] A Quarta Teoria Política deve buscar sua “inspiração sombria” na pós-modernidade, na liquidação do programa do Iluminismo e na chegada da sociedade do simulacro, interpretando isso como um incentivo para a batalha, ao invés de como um dado fatal.” Alexander Dugin, Quarta Teoria Política, p. 36.

Na época em que a forma de produção no sistema capitalista assume sua (o ápice até o momento) descentralização e modo de produzir personalizado, se fundamentando cada vez mais no consumo em cima de desejos e particularmente no desejo de “pertencer”, a Quarta Teoria Política prega uma visão de mundo que fomenta uma identidade que, ainda que se utilize do fator pertencimento de grupo, é oposta ao “espírito do tempo” de integração particularizada.

Tal identidade é de recusa e abandono a esse espírito, se auto-proclamando “dissidente” e apontando as contradições de outras identidades enquanto defendem, a depender de qual território estão, identidades previamente existentes na cultura em que se hospedam (culturas regionais, certos gêneros de música e até mesmo algumas culturas e tradições políticas).

Como um ser parasitário, se aproveita do sentimento positivo de uma determinada população por uma determinada identidade coletiva previamente existente e tenta, a partir do revisionismo, encampar uma luta cultural contra seus oponentes políticos, não apenas aqueles que realmente se utilizam, da mesma forma que eles, da identidade enquanto locus e critério central para a análise e tomadas de decisão política.

Por ser precisamente uma identidade e uma teoria apenas em potência, não raro podemos ver uma ambiguidade típica do fascismo, onde boa parte de seus defensores não conhecem ou não sabem os pressupostos de tal teoria e não raro acreditam que estão em uma “missão heroica”. O “macete” filosófico está no fato de que a Quarta Teoria Política não é ainda uma teoria, mas uma “potência de teoria”, baseada numa visão de mundo. Portanto, tal identidade parasitária de revolta e rejeição é uma identidade vazia, uma vacuidade, sem determinações, pronta para ser preenchida pelas características da identidade hospedeira:

Não obstante, o ponto de partida dessa ideologia é precisamente a rejeição da própria essência da pós- modernidade. Esse ponto de partida é possível — mais nem garantido, fatal ou pré-determinado — porque ele emerge do livre arbítrio do homem, de seu espírito, ao invés de um processo histórico impessoal. Porém, essa essência (muito como a detecção da razão por trás da própria modernidade — imperceptível previamente — que realizou sua essência tão completamente que exauriu seus recursos internos e mudou para o modo de reciclagem irônica de suas fases anteriores) é algo completamente novo, previamente desconhecido e apenas deduzido intuitivamente e fragmentariamente durante as fases primitivas da história ideológica e do conflito ideológico.

A Quarta Teoria Política é uma “Cruzada” contra: Se a terceira teoria política criticou o capitalismo a partir da Direita e a segunda — a partir da Esquerda, então a nova fase não mais destaca essa topografia política: é impossível determinar onde a Direita e a Esquerda estão localizadas em relação ao pós-liberalismo. Há apenas duas posições: conformidade (o centro) e dissenso (a periferia). Ambas as posições são globais. A Quarta Teoria Política é o amálgama de um projeto comum e um impulso comum em relação a tudo que foi descartado, derrubado e humilhado durante o curso da construção da “sociedade do espetáculo” (construindo a pós-modernidade).Alexander Dugin, Quarta Teoria Política, p. 28.

Exatamente por isso, o método de política empregado pelos membros da Quarta Teoria Política (influenciado por Julius Evola) visa a guerra cultural para, a partir dos preconceitos e fragilidades da cultura nacional, tentar fabricar o mesmo ambiente que propiciou o surgimento do fascismo no início do século XX. Anti-materialistas ferrenhos que são, partem do plano das ideias, dos mitos e da guerra de propaganda, tentando trazer o mesmo espírito do surgimento do fascismo, para a criação de um fascismo do século XXI.

Inclusive, essa é uma das proposições do livro “Fascismo visto da Direita”, de Evola, onde este pinça o que acredita ser “aspectos positivos do fascismo” e tenta criar um conjunto de ideias do ideário fascista que sejam supostamente“toleráveis” nas sociedades que sucederam à Segunda Guerra Mundial, tanto em caráter internacional quanto nacional.

O que torna a defesa quanto ao fato de serem ou não fascistas, empregadas pelos seguidores do pensamento de Evola e Dugin, um tipo caricato de deboche. Um interlocutor mais sábio poderia afirmar: “Se de fato não são fascistas, podem ser até mesmo piores.” Se utilizando da ignorância geral quanto a sua existência e da ignorância de seus próprios seguidores quanto ao conteúdo programático que defendem, os seguidores da Quarta Teoria Política se sentiram confortáveis para instituir como programa político “aquilo que fora banido pela modernidade”:

Enquanto esse curso dos eventos é, de algumas maneiras, ainda mais aterrorizante do que o materialismo e o ateísmo dogmático diretos e descomplicados, o enfraquecimento da perseguição da Fé pode ser aquela chance, se os representantes da Quarta Teoria Política agirem consistentemente e descompromissadamente na defesa dos ideais e valores da Tradição. Agora é seguro instituir como programa político aquilo que foi banido pela modernidade. E isso não mais parece tão tolo e destinado à derrota quanto antes — pelo menos porque tudo na pós-modernidade parece tolo e destinado à derrota, inclusive seus aspectos mais “glamourosos”. Não é por acaso que os heróis da pós-modernidade são “aberrações” e “monstros”, “travestis” e “degenerados” — essa é a lei do estilo. Contra o pano de fundo dos palhaços do mundo nada e ninguém pode parecer “arcaico demais”, mesmo as pessoas da Tradição que ignoram os imperativos da vida moderna. A validade dessa asserção não é provada apenas pelas conquistas significativas do fundamentalismo islâmico, mas também pelo ressurgimento da influência exercida pelas vastamente arcaicas seitas protestantes (dispensacionalistas, mórmons, etc.) na política externa americana. George W. Bush foi à guerra no Iraque porque, em suas próprias palavras, “Deus me disse para invadir o Iraque!”. Isso é bastante compatível com seus professores protestantes metodistas.” Alexander Dugin, Quarta Teoria Política, p. 36–37.

Por que o Trabalhismo e a Quarta Teoria Política são incompatíveis e inimigos ideológicos?

O Trabalhismo Brasileiro, advindo do positivismo jacobino praticado no sul do Brasil parte de uma matriz filosófica empirista, que, ao absorver antropofagicamente partes fundamentais da teoria socialista utópica e materialista, de tipo metafísico vulgar ou dialético, bem como concepções importantes do iluminismo, contempla idealismo e materialismo, desde que racionalmente e logicamente plausível, e cientificamente comprovável, pois tem no empirismo uma espécie de “cola” e trava conceitual, como critério para adesão.

Além disso, como resultado desse processo, o Trabalhismo Brasileiro é de forma evidente um instrumento da classe trabalhadora, cujos dilemas materiais e contradições apenas se tornaram mais evidentes no atual desenrolar do ciclo neoliberal em nosso país, realidade que este pretende vingar para construir um novo futuro nos paradigmas da modernidade, com democracia socialista, igualdade, liberdade e uma concepção classista e não identitária como nexo central de análise.

Ou seja, o Trabalhismo Brasileiro é um gigante representante da modernidade, particular do próprio espírito e história da classe trabalhadora brasileira, e se orgulha e se ufana muito disso, pois enquanto cultura política e fruto de uma tradição, também nunca perdeu sua ligação com o Mito (como pregam os apologistas do Apolíneo asséptico) desde que submetido a análise material do logos, sob um critério da luta de classes e do humanismo, como espécie de trava da potência destrutiva da palavra mítica.

Já a “Quarta Teoria Política”, que nem nasceu, mas já está morta, se afirma não apenas como combatedora da pós-modernidade, mas como um fruto indissociável desta. Se insere na esteira da conjunção do pensamento aristocrático do final do século XIX e começo do século XX, se vende enquanto idealismo radical, mas é sabidamente parte do irracionalismo filosófico, repaginado e distribuído em roupagem popular, colocando uma identidade vazia submetida a uma visão de mundo proveniente dos autores que a baseiam (muitas vezes implícita) como centro de sua prática e pensamento político.

Além disso, seu discurso e identidade se fundamenta na crítica ao “mundo moderno”, ao Iluminismo, e boa parte do universalismo que também existia antes mesmo de tal período. O futuro ideal e idílico dos criadores da falsa necessidade de uma “Quarta Teoria Política” é um futuro particularizado, por muralhas acríticas de cultura, ethos e identidade, simbolizado no mundo das tradições como espelho, como uma forma de reação estúpida, romântica e pós-moderna aos fenômenos negativos da própria pós-modernidade e da nova formatação e organização do neoliberalismo e do sistema capitalista, marcada por uma globalização assimétrica que camufla fortes vínculos imperialistas.

Se baseando nesse sentimento de rejeição e em meias verdades sobre o mundo contemporâneo, vendem tal saída extrema, absurda e desnecessária de retorno, que também termina em particularização em ilhas, como uma verdadeira tentação de Mefistófeles. Existe uma importante e intransponível interdição entre tais visões de mundo. Embora ambas rejeitem a fábula conhecida como “Fim da História”, proposta por Francis Fukuyama, elas a rejeitam por motivos radicalmente diferentes:

A visão de mundo dos criadores da “Quarta Teoria Política” a “rejeita” aceitando seu conteúdo e aderindo a este, a saber, aos próprios princípios e forma de pensar política da pós-modernidade, como forma de se aproveitar da decadência do coração filosófico do ideário iluminista para trazer a tona “tudo aquilo que fora banido pela modernidade”. Por isso também envergonhado, em sua proposta de criação de uma Quarta Teoria Política, Dugin afirma fazendo coro discreto com Fukuyama uma suposta vitória do liberalismo como representante do espírito da modernidade.

Isso não se dá por acaso, é uma necessidade a ser afirmada por Dugin. Caso contrário seu argumento para converter socialistas e fascistas em defensores de sua “nova-teoria” não existiria, pois, se o liberalismo não venceu e não representa a “modernidade”, por que diabos alguém seria convertido a uma reação extremada que traia seus próprios princípios? O Trabalhismo Brasileiro desdenha da tese de “Fim da História” e rejeita com veemência qualquer adesão a essa estúpida premissa que consigo carrega um triplo cavalo de Troia:

1º. A adesão a unipolaridade dos Estados Unidos e aceitação acrítica do credo-neoliberal, em sua versão que prima pela comercialização de identidades e produtos relacionados a estas, (seja de esquerda ou de direita conservadora), que destrói o globo e as sociedades de forma assustadora e cada vez mais visível.

2º. A adesão à multipolaridade quando atrelada a um reacionarismo de identidade particularista, culturalista, esotérica e boçal.

3º. Adesão a uma síntese moderada entre os dois primeiros, ainda assim reconhecendo pressupostos fundantes da pós-modernidade e da tese de “fim da história”.

Não temos que escolher entre narcísicos (ou seja, irracionalistas afixados a própria consciência), dionisíacos (os que se guiam apenas na pulsão, paixão e emoção, para o bem ou para o mal), nem apolíneos (neoliberais e racionalistas assépticos que desconhecem a totalidade do que é ser humano), visto que nenhuma dessas alternativas serve ao projeto histórico da classe trabalhadora brasileira, que tem seu próprio tempo.

Por outro lado, o Trabalhismo Brasileiro entende sua responsabilidade histórica com nosso país e nosso povo por isso, age com paciência e escolhe Kairós, ou seja, o tempo correto para agir, o melhor instante possível, onde habita a possibilidade de se conseguir afastar o caos e até mesmo reverter processos em andamento, para trazer um tempo bem melhor para se viver. Se a era presente ruma para um caminho incorreto, temos fé inabalável de que existe possibilidade de reverter tal rumo e avançar a história de forma correta para o nosso povo.

“Tese XVI: O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história.” Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Por isso, o Trabalhismo Brasileiro se banha em sua própria memória e na história da América Latina e procura no ponto de vista da classe trabalhadora os fios de nossa própria história para, ciente da corrupção dos valores Iluministas do próprio liberalismo durante a pós-modernidade, se afirmar como radicalmente inclusivo, democrático, universalista, igualitarista, querendo construir através do passado pensado pelos nossos mortos (que a historiografia da classe dominante não conta) um futuro realmente redentor!

“Tese II: Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana”, diz Lotze, “está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro”. Essa reflexão conduz-nos a pensar que nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar que já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres que poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.” Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Além disso, se baseia na constatação de que em nosso continente o ideário socialista subsiste com mais força do que em qualquer outro lugar do mundo, como prova cabal de que o “fim da história” de Fukuyama sempre se tratou de uma bravata que não nos impediria de construir finalmente o programa radicalmente universalista da modernidade, de uma forma que o liberalismo nunca foi capaz! Avançando com a modernidade e seus valores para superá-la em suas deformações fulcrais, (o domínio econômico, político e social por parte do mercado, corporações e grandes potências) como demonstra a atual organização do sistema capitalista imperialista.

Particularmente em relação ao Brasil, estabelecer finalmente o início do fim da aliança espúria de nossa classe dominante submissa com a classe dominante relativa aos países centrais e emergentes em ascensão, que destrói nosso povo e nação na matéria e no espírito e retira dos trabalhadores qualquer poder político real, dando em troca um teatro de fantoches burlescos. Se essa era desmorona sobre si mesma e cai de podre, é porque já está morta e a verdadeira teoria política que reconstruirá a nova era, ao menos para o Brasil, já existe e seus pressupostos foram pensados pelos maiores gênios brasileiros do século XX. Não existe espaço para oportunistas (aqueles que não estão realmente conectados com tal espírito) pegarem carona na cauda deste cometa.

Reconhecer a necessidade de uma “Quarta Teoria Política” ou seus pressupostos sobre o “fim da história” e a pós-modernidade representa, instantaneamente, uma traição ao programa histórico do Trabalhismo Brasileiro pactuado com a classe trabalhadora e com os espíritos de nossos mortos, oprimidos e injustiçados do passado!

O Trabalhismo Brasileiro não responde a nenhuma dessas questões afirmando identidades vazias de revolta ou que são contra outras identidades, muito menos prega a criação de qualquer “nova teoria política”, pois já se considera a única teoria correta para o futuro brasileiro, que o conecta com nosso passado relacionado a outro futuro possível que nos foi negado.

Ao contrário dos pensadores que baseiam e propagam a necessidade de uma suposta “Quarta Teoria Política”, somos radicais defensores da modernidade como ponto onde se tornou, por intermédio da tecnologia e da ciência, possível uma sociedade de abundância, realmente livre, justa, igualitária, radicalmente democrática e profundamente humanista.

Acreditamos e está no coração da ideologia trabalhista, que temos um povo criativo e valoroso. Já temos nossa terra prometida e só nos falta fazer, pela luta, cumprir a promessa de construir uma República, soberana, independente, e verdadeiramente democrática para nossa classe trabalhadora, feita por ela e para ela, para um futuro marcado por igualdade, justiça, democracia e respeito a todos e qualquer cidadão brasileiro, sem discriminações de qualquer tipo. O Trabalhismo Brasileiro é rebelde, esperançoso, tem orgulho de ser autônomo e tem as respostas para o dilema brasileiro em nosso presente momento histórico.

É verdade que o Trabalhismo Brasileiro, em sua visão de política externa independente construída desde o século XX, é latinista, terceiro-mundista, com aspectos pan-americanistas e está atrelado ao anti-colonialismo e ao anti-imperialismo na defesa da soberania nacional e autodeterminação dos povos. Portanto, francamente em oposição a um mundo unipolar, representado por uma adesão acrítica a globalização, a sociedade do espetáculo, ao aumento exponencial da centralidade (econômica, política e social) do setor financeiro, enquanto fruto de uma visão escatológica e determinista do fenômeno como sendo irreversível e inevitável.

No entanto, este de forma alguma o faz pelos mesmos motivos dos que defendem uma reação a esse fenômeno, também identitária e tacanha baseada em escatologias religiosas de outro tipo, perversas no sentido de fragmentação com a realidade.

O Trabalhismo Brasileiro se baseia no melhor das ciências humanas produzidas em nosso país, discutindo de forma científica o fenômeno da globalização, suas assimetrias, desigualdades, tendências, a divisão internacional do trabalho, pois tem uma responsabilidade séria para com a nação e nosso povo, e não tem tempo a perder brincando com a “sociedade do espetáculo” na internet, como fazem os amantes de Narciso e Dionísio noite e dia. Existe uma intransponível diferença entre nós.

Nesse sentido, tais diferenças gritantes e não conciliáveis, não são apenas incompatíveis, mas aberrantemente incompatíveis. O Trabalhismo Brasileiro, se baseando na recusa a premissa de que identidade deva ser o nexo de práxis política, sobretudo na sociedade do espetáculo e dos espasmos midiáticos, prega o cidadão político como totalidade, sujeito complexo e humano, em constante relação com o meio e especialmente com a sociedade, portanto, em constante transformação de espírito e consciência.

Ao contrário do que fazem os ilusionistas da “Quarta Teoria Política”, identidade canibal de identidades, o Trabalhismo Brasileiro, enquanto negador da identidade no centro da política na sociedade do espetáculo, não nega, e nunca irá negar, identidades por si ou a necessidade histórica urgente de unir a luta de classes com o fim das opressões sofridas por todas as minorias. Esta é uma pauta histórica do PDT e do Trabalhismo Brasileiro a partir das lutas de minorias no Brasil ao longo da história.

Diferente do que fazem os reacionários, o Trabalhismo Brasileiro não mobiliza preconceito de nossa população conservadora contra identidades relacionadas a defesa de minorias, pois entende que não nos interessa a divisão de nossa classe trabalhadora, nem a discriminação de irmãos e irmãs do povo.

Sobretudo de patrícios trabalhadores que expressem porventura as formas neoliberais e pró-mercado de “defesa” dos interesses das minorias, pois entendemos que o sistema capitalista, a partir de uma sólida infraestrutura burocrática e de um aparato superestrutural de difusão e reprodução, se apropria das lutas sociais para amenizar e modular como as pulsões sociais se dão e isto não é culpa de nossos irmãos e irmãs que sofrem e sempre sofreram. Sabemos que a causa última pelo que batalham não é apenas o correto, mas o justo.

Enquanto os farsantes misticistas oferecem ódio, segregação e manipulação de preconceito tolo, nós, os verdadeiros defensores do Trabalhismo Brasileiro e seu espírito, oferecemos amor e integração ativa para toda a classe trabalhadora, sem distinções. Somos todos irmãos, paz entre nós, guerra aos senhores!

O Trabalhismo Brasileiro nega as formas neoliberais de fazer política e democracia, justamente porque quer tirar nosso povo dos grilhões da democracia formal do dinheiro e da representatividade superficial apenas para os amigos do sistema e do mercado e trazer uma democracia radical e direta universalmente profunda, com gigantes reformas na distribuição do poder na sociedade.

No âmbito das minorias, dar poder político e econômico não apenas a alguns representantes atomizados, mas um extenso número de direitos sociais que concedam poder político e econômico para estes enquanto indivíduos que são parte de uma comunidade integrada a sociedade como um todo; enquanto membros da classe trabalhadora que comandará os destinos do país e parte de uma nação igualitária, justa, livre e próspera, na prática e não apenas na ideia formal; enquanto agentes criadores da própria identidade na cultura nacional e em relação a sua projeção internacional e por fim, como cidadãos completos, cidadãos políticos na totalidade e não como segmentos de uma identidade que é mercadoria.

Isso, como se pode verificar, não está em contradição alguma, nem tampouco colide frontalmente com os anseios de movimentos em defesa de diferentes minorias que temos no país. Pelo contrário, está adequado a uma agenda histórica relacionada a um vasto ciclo de lutas e que relaciona a luta de classes, pautas relativas a minorias e a luta anti-imperialista.

A recusa de se colocar a identidade no centro da luta política tem o intuito de auxiliar na mobilização popular contra as forças anti-populares, sem castrar a afirmação de diferenças, porém reduzindo a particularização da classe trabalhadora em nichos cada vez mais sectários e que não se comunicam, as “bolhas”, características da sociedade do espetáculo, onde um ser humano precisa expressar a complexidade do ser e sua relação com o meio e sociedade ao longo de sua vida, a saber, toda sua experiência em apenas alguns segundos, a partir de um catálogo de “identidades simbólicas, signos e palavras-chave”, muitas vezes originadas sob uma perspectiva até mesmo preconceituosa, vendidas e moduladas de cima para baixo, do centro para a periferia, pela própria lógica do sistema capitalista do século XXI. Em tal reino, impera a lógica de “reconhecimento” e “pertencimento’’.

Exatamente por isso, defensores da necessidade de uma “Quarta Teoria Política”, que tentam sem sucesso revisar a história, visão de mundo e a teoria do Trabalhismo Brasileiro, se queixam do PDT por não abandonar, como nunca abandonará (pois, é intérprete de uma tradição sinceramente humanista) a justiça e a radicalidade universal de sua agenda democrática, política, social e economicamente integradora, com as minorias da classe trabalhadora.

Demonstram com esta postura, os pregadores da palavra vazia, justamente o caráter alienígena de sua presença na cultura política e tradição do Trabalhismo Brasileiro. Só quem não pertence e não carrega consigo o verdadeiro espírito do legado de Getúlio, Jango e Brizola e de toda cultura política no entorno destes poderia demonstrar desconhecimento, ou a ausência de uma prática inconsciente, relativa ao fato do humanismo enquanto ponto comum fundamental de todas as doutrinas que se acoplaram no que veio a ser o Trabalhismo Brasileiro. Cabe destacar que, se o Positivismo praticado no Rio Grande do Sul age como uma espécie de cola na teoria política trabalhista, isso ocorre por uma opção histórica distinta que este grupo tomou em relação a outros positivistas de nosso país.

“O amor vem por princípio, a ordem por base

O progresso é que deve vir por fim

Desprezaste esta lei de Auguste Comte

E foste ser feliz longe de mim.”
Positivismo — Orestes Barbosa / Noel Rosa

A música acima brinca de forma muito pedagógica com a ideologia positivista, elencando os princípios expressos em seu lema: Amor, Ordem e Progresso. O amor, nesse sentido talvez seja um dos pontos mais interessantes da crítica positivista ao liberalismo. Este não se trata do conceito de amor romântico como tratamos habitualmente, mas sim do amor irrestrito pela humanidade, em oposição ao princípio de fraternidade liberal, visto por Augusto Comte como fraternidade apenas entre os partícipes da classe dominante ou da oligarquia esclarecida de seu período histórico.

Por motivos diversos, após a Segunda Guerra Mundial, enquanto a vertente positivista ligada aos militares foi aderindo a uma concepção norte-americana, tendo na “ordem” como seu princípio guia, até se tornar liberal-positivista, o positivismo do Rio Grande do Sul, na figura de Getúlio Vargas e seu discípulo mais famoso, João Goulart, tendo no “amor” pela humanidade como seu princípio guia, se envolveu com os movimentos de trabalhadores até se tornar o Trabalhismo Brasileiro e aderir a uma posição socialista com orgulho.

É justamente esse amor irrestrito para com todos os nossos irmãos brasileiros e seres humanos que agiu como trava em nossos piores momento mais de uma vez, que nos fez ser muito melhores do que poderíamos ter sido, que nos fez, mesmo quando não estávamos totalmente corretos, rumar para o caminho correto e corrigir os nossos enganos lutando sempre por nosso povo no papel de vingador da classe.

Tal amor pela humanidade, universalizante, é central na ideologia trabalhista e é precisamente o ponto comum entre todos que já contribuíram de mente e corpo para o espírito dessa tradição se tornar o gigante que hoje é. Uma vez tendo a revelação, cientes desse fato, nenhum de nós irá abdicar disso nunca. Nesse sentido, pensemos num dos símbolos mais fundamentais de toda a mitologia trabalhista, parte presente também na própria história do Brasil e na identidade nacional, Getúlio Vargas.

“No caso da morte de figuras políticas, os funerais costumam se tornar um momento de consagração de suas vidas. Trata-se da ocasião em que, morto o corpo, a alma torna-se imortal, como imortais tornam-se alguns de seus “feitos”, selecionados e ressignificados pela memória, poderosa força que permite “que se saia da vida para entrar na história.” Ângela de Castro Gomes, Brizola e o Trabalhismo, p. 12–13.

Considerando os ensinamentos da gigantesca historiadora brasileira Ângela de Castro Gomes e conscientes que após seu supremo-sacrifício, a simbologia de Getúlio ,criada a partir de seus feitos e de sua relação com a classe trabalhadora, se sacramentou com a Carta Testamento e representam agora, partes que, em sua totalidade (descartados os erros e as partes criticáveis por cada grupo ideológico a partir de seus princípios), formavam um legado para ser defendido e ressignificado. Nesse sentido, Vargas, enquanto marco central na história de nosso país, é o espelho de cada grupo que o reivindica:

Os defensores do Trabalhismo Brasileiro interpretam o símbolo de Vargas não apenas enquanto um signo de seu legado propriamente dito, mas sintetizado com a agenda da classe trabalhadora construída desde antes do século XX. Pois, após o sumo-sacrifício de Getúlio em defesa de tal agenda acoplada a modernização do estado-nacional brasileiro, os trabalhadores passaram a ter força e fé na imagem do burguês mais esclarecido que já tivemos que, ao cometer suicídio traiu sua classe e entrou para a história de forma decisiva como herói dos trabalhadores brasileiros, representando para estes, um deles e, em simultâneo, eles próprios, e apenas por isso este se tornou eterno e sagrado a partir da redenção, pelo sacrifício em benefício dos vivos que sofrem e dos mortos que sofreram.

Poderia ter feito um acordo, mas cometeu suicídio em nome dos pobres. Poderia ter se retirado em silêncio para São Borja, mas cometeu suicídio em nome dos humildes. Conseguiria ter escapado de seu destino, mas o seguiu em benefício dos espoliados, redimindo assim não apenas a si próprio, mas a história de nosso país e povo, que teve assim um pai fundador da nação e da própria nacionalidade, com sacramentada imagem heroica, generosa, altruísta. Não um tirano como seus inimigos tentavam representá-lo e forçá-lo a ser, mas um gigante em nossa memória, que nos inspira a fazer mais por nós e pela humanidade.

De contradições e eventos como este, inesperados à luz das teorias estrangeiras, é que floresce a delícia e a particularidade de ser brasileiro. Isso é algo que qualquer pessoa que defenda o espírito do Trabalhismo Brasileiro “de corpo e alma” sabe muito bem. Mesmo que não saibam expressar ou articular tais Logos, sua prática e sua interpretação evidente da identificação de Vargas com a esquerda reside especialmente neste fato.

Observemos o caso de Brizola, o homem que mais amou o Brasil e o povo brasileiro. O velho Leonel, que nesse ano muito especial completaria 100 anos, quando criança teve uma vida muito humilde e difícil. Por ser beneficiado com a Revolução de 30, conseguiu aprender a ler e a escrever, se tornou engenheiro, se envolveu com política de juventude e com o Trabalhismo Brasileiro, defendendo sempre os mais humildes e o interesse nacional.

Brizola foi profundamente influenciado não apenas pelas transformações materiais promovidas pela Revolução de 30, mas também por seu ideário e por sua mítica. Tendo a oportunidade de conviver de perto com Vargas, o velho Leonel sempre carregou o estandarte de Getúlio, para defender a agenda e as pautas da classe trabalhadora, necessárias ao desenvolvimento nacional perante o imperialismo e o subdesenvolvimento.

Ninguém pode negar que Brizola tinha uma interpretação profundamente positiva de Getúlio Vargas e seu legado, nem negar que Brizola tenha conseguido a partir disto uma profunda conexão com a história de nosso povo e seja marcado como um dos maiores nomes da esquerda na história do Brasil, tendo sido, por exemplo, grande aliado de Luís Carlos Prestes no fim da vida deste.

Nesse sentido, é importante reforçar a noção que a historiadora Ângela de Castro Gomes traz em sua obra de nome “A invenção do Trabalhismo”, de que a classe trabalhadora não é estática ou estúpida, ela participou da criação do Trabalhismo Brasileiro, se beneficiou dele na medida de seus interesses, e “subverteu” a ideologia em seu benefício como instrumento de luta, cobrando o cumprimento do que lhes era prometido por tal doutrina e seus representantes, muitas vezes colocando estes últimos em posições mais radicais do que as que ostentavam pessoalmente. O mito sociológico da classe trabalhadora tola e espectadora, é, pois, um mito da classe dominante que cumpre um propósito específico.

Já os defensores da necessidade de uma “Quarta Teoria Política”, quando no teste do espelho de Getúlio, projetam seu próprio anticomunismo, reacionarismo e tendências autoritárias contra o que consideram diferente ou “degenerado”, características que são fruto não do legado de Getúlio, mas das mesmas pessoas que o traíram em 45 e o levaram ao suicídio em 54.

Se arvorando em mitos da historiografia da classe dominante, especificamente relacionada às forças anti-Vargas, representantes dessa visão de mundo da “Quarta Teoria Política” reforçam uma interpretação idealista da história, centrando imagens e pessoas ao invés de classes sociais, na relação entre infraestrutura e superestrutura ao longo de determinado tempo em um determinado espaço geográfico, como faz, em resumo, a interpretação materialista da história.

Daí que, numa traição a autonomia do próprio espírito do Trabalhismo Brasileiro ao longo de sua trajetória em conjunto das lutas de nossa classe trabalhadora, estes defendem a tese de um Vargas fascista, fazendo peso, num verdadeiro espírito de porco indesculpável, contra todo o esforço movido pelos representantes históricos da tradição trabalhista, que evidentemente por motivos anteriormente explicitados buscam compreender a totalidade de seu desenvolvimento (o seu movimento teórico em direção ao socialismo), não apenas a interpretação de fragmentos cristalizados e descolados do seu contexto histórico, compreendendo-o, como ele próprio se entendeu, evidente em sua atuação política após 1945, como de esquerda, nacionalista e socialista.

Os defensores da “Quarta Teoria Política” não o fazem porque isso seja verdade, mas, porque lhes convém fazer crer na falácia. Utilizando a ideologia e historiografia da reação ao fenômeno nacional-popular do século XX quando lhes é útil, tentam sustentar a tese de que se todo o extenso legado Varguista e da Revolução de 30 é fruto de um “Vargas Fascista”, isso não seria nada demais, seria algo até “positivo”. Surfando na pós-modernidade e na pós-verdade, tentam cumprir sua missão de fazer “o que fora banido pela modernidade transitar livremente”, como pregou Dugin no livro que baseia a prática dos seguidores da proposição de uma “Quarta Teoria Política” por aqui.

Para tal, “pegam carona” no símbolo mais sagrado para a ideologia, cultura política e tradição do Trabalhismo Brasileiro e um dos mais importantes símbolos da história nacional, enquanto tentam sujá-lo na mesma lama a qual chafurdam. Tratando-se de prática política, é uma desonestidade com a autonomia do espírito da cultura política e tradição do Trabalhismo Brasileiro, cujo representante é o PDT, e mais do que isso, trata-se de uma tentativa, infrutífera diga-se, de corrupção de um símbolo central para a história brasileira.

A direção que o Trabalhismo tomou em sua história foi uma decisão coletiva de todos que compuseram o movimento e da própria classe trabalhadora em luta, não de revisionistas. Trair essas pessoas e seus ideais é a maior corrupção que pode existir. Além disso, ela demonstra perfeitamente as diferenças entre os Trabalhistas e aqueles que tentam revisar sua história, sua ideologia, e parte de seu legado, da mesma forma que o fazem em outros nichos da esquerda nacionalista e da direita.

Nesse sentido, a partir das teses de Walter Benjamin sobre a história, particularmente quanto a sua sexta tese, podemos tecer uma das comprovações de como a teoria em potência “Quarta Teoria Política” não apenas é incompatível, mas como também é arqui-inimiga do Trabalhismo Brasileiro no presente momento histórico:

Tese VI: Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Considerando que o reconhecimento de Getúlio enquanto simbologia para ambos os grupos (trabalhistas e postulantes da necessidade de uma “Quarta Teoria Política”) representa perfeitamente bem a situação descrita acima. Pensemos que ambos os grupos escolhem Vargas e Brizola enquanto símbolos, mesmo que lhe imputem valores opostos, não porque compartilham de valores ou princípios, mas, porque exatamente na simbologia de Vargas reside a chave para a compreensão mitológica e simbólica da possibilidade de uma reforma radical ou processo revolucionário contra a atual ordem de coisas em nosso país, a partir da memória que é operada com diferentes focos, estes relativos às diferentes origens de classe e concepções ideológicas de quem as opera.

Ocorre que, existem dentro desta mesma linha jogada divergentes futuros possíveis, respectivos a qual grupo conseguir tomar a hegemonia cultural, simbólica, referencial e, mais importante, hegemonia real sobre o espírito da velha esquerda brasileira do século XX e, principalmente, seu legado. Seja como verdade ou como farsa, como redenção ou tortura e corrupção da memória bela em algo vil, por que isso ocorre?

“Tese IV: Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo”. Hegel, 1807

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas” Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Nos anos 90, como já debatemos aqui anteriormente, o sistema internacional e o sistema capitalista passam por uma reforma, que marca seu movimento após o fim da Guerra Fria, para tomar de assalto todos os sistemas políticos do globo em duas frentes:

  • uma com retórica e estética conservadora e neo-liberal na economia.
  • outra com retórica e estética “progressista”, mas, também neo-liberal na economia.

Ambas as opções são lastimáveis no caso brasileiro. Com isso, o neoliberalismo foi se tornando o “normal” no período que contempla o fim da Guerra Fria até o presente momento, e todas as disputas se deram sob seu domínio, em seu território conceitual e econômico, existindo certa alternância apenas em termos estéticos e de discurso.

Tal período centrou o nexo das disputas políticas sobre critérios de aparência, identidade, pertencimento e retórica nas disputas e debates políticos formais ou parlamentares. Já que ambos os lados quase sempre defenderam variações do neoliberalismo econômico alterando-se apenas o enfoque, sobra para o embate político meras aparências do discurso, não propostas de reformas políticas, econômicas e reformas estruturais concretas para mudar nossa sorte em benefício da classe trabalhadora, das minorias e da nação, mas apenas algumas vitórias simbólicas, que devemos admitir a importância no caso particular do Brasil.

Contudo, em um contexto de pós-crise econômica mundial de 2008, isso gerou uma evidente frustração na classe trabalhadora contra a esquerda partidária que aderiu a tal pensamento e prática. Resumidamente, e com diferenças e particularidades locais, tal fenômeno vem ocorrendo em todo o ocidente geográfico sendo representado pelo descrédito histórico dos trabalhadores para com a esquerda partidária de seus respectivos países.

Após a Guerra Fria, a esquerda socialista organizada de tais países e, no caso do Brasil, o processo de ditadura-militar e redemocratização, não está em condições de conseguir canalizar as pulsões da classe trabalhadora e frações da pequeno-burguesia, que começaram a se avolumar cada vez mais de forma desorganizada e imatura enquanto movimento político, em contestação romântica contra a hegemonia e o “establishment”. Sem uma explicação, isto é, uma teoria própria, ou um projeto, mas uma verdadeira pulsão sem rumo por transformação social.

Na verdade, tanto a “velha esquerda” quanto a esquerda partidária atrelada ao neoliberalismo econômico erraram muito em suas análises e em sua prática. Precisamente tal processo foi uma necessidade para o renascimento da extrema-direita na Europa e nos EUA e acabou por ocorrer de forma similar no Brasil, com o fenômeno do Olavismo e do Bolsonarismo, tendo em conta que a “velha esquerda” se desorganizou neste período e a nova-direita se aproveitou da não existência de movimentos socialistas de grande porte organizados contestando a atual ordem social, para capitalizar o discurso anti-hegemônico e ascender ao governo com apoio das mesmas massas que iria prejudicar profundamente.

Nesse sentido, o Trabalhismo Brasileiro não estava morto, mas, tirando um cochilo, sem nunca parar de tecer suas análises e cálculos para disputar um projeto rebelde quando a janela de tempo das transformações fosse aberta. Acordou de 2016 em diante, se propõe a traçar soluções para todos os problemas da vida nacional e, de um ponto de vista estratégico de longo prazo, se encontra acumulando forças, formando ideologicamente militantes em massa, organizando suas bases, em uma ferrenha disputa ideológica não pela hegemonia eleitoral, mas por uma hegemonia intelectual (como visão de mundo ideológica e programática) contra a fração liberal da esquerda-brasileira, e despende parte importante de seus esforços nisso. Os outros grupos políticos da esquerda partidária organizada estão com o mercado, com a classe dominante e com o sistema, em grande medida.

O Trabalhismo Brasileiro, com respeito a todos os movimentos, é o único movimento político com partido grande organizado e viés anti-sistema, base militante, proposta econômica radical e tem a obrigação de estrategicamente fechar alianças orgânicas com as forças de esquerda independentes que contestam o neoliberalismo. Este tem como trunfo, sua memória, tradição e história que se mescla com a própria história da classe trabalhadora brasileira e nossa identidade nacional, para participar como um dos atores principais em uma reforma profunda e radical contra o atual estado de coisas.

Por isso, alertamos que, para nós trabalhistas, o embate ideológico com aqueles que seguem a proposição de “Quarta Teoria Política” é de natureza muito mais profunda e inevitável. Considerando o que nos diz Walter Benjamin e deslocando seus conhecimentos para nosso contexto:

“Apêndice 1: O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.

Apêndice 2: Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias.Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Se nenhum dos grupos organizados, potencialmente catalisadores de tal evento, inimigos ou potenciais aliados históricos, reivindicam o mesmo legado, isso não ocorre em relação a “Quarta Teoria Política”, que entendeu que a chave simbólica para imprimir uma mudança profunda contra o neoliberalismo no Brasil está atrelada especificamente ao mito de Getúlio Vargas e da própria Revolução Brasileira, e também compreendeu que quem conseguir executar a reforma infraestrutural correta na economia, pode imprimir os rumos ideológicos em costumes e valores.

Uma coisa há de se dizer, foram mais espertos do que boa parte de nossa esquerda atual que, embora tenha sincero ódio do neoliberalismo até certo ponto, também têm sincero desconhecimento quanto a história nacional, em particular, do ponto de vista da “velha esquerda” que formou nossos mitos e influenciou em boa parte na consciência de nosso povo.
Nesse sentido, por ambos os grupos pretenderem imprimir mudanças radicais na vida nacional baseando-se no mesmo mito (mas partindo de perspectivas distintas), podemos observar um fenômeno de espelhamento muito particular e raro, que relembra a imagem do deus romano Jano, com uma face voltada para o passado e a outra para o futuro, que representa a transformação. Tal imagem representa o olhar para um passado, tendo no foco que se olha seu maior segredo, refletindo de forma decisiva na construção do futuro. Ambos os grupos aqui descritos podem olhar o mesmo passado, encontrar coisas absolutamente distintas e, a partir disso, projetar um futuro mutuamente exclusivo a partir do mesmo símbolo ou mito fundante do ideário nacional.

Nesse caso em particular, poderíamos também observar que, enquanto uma das faces faz força para “avançar os anos”, mas retornar a um passado mitológico milenar, fazendo com isso apenas “peso na história”, a outra faz força para avançar de forma consequente e finalmente decretar o fim desta era morta, levando desta o que de melhor teve, seguindo de forma natural com o fluxo das eras, dando pouco trabalho para Chronos. Sobre isso, pensemos:

Tese XVII: O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas.” Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Retornando ao argumento, os ideólogos realmente vinculados com o trabalhismo sabem que tem consigo um tesouro histórico e um momento histórico propício para a transformação social. Eles encontram e se apropriam de uma reminiscência tal como ela relampeja no momento de perigo, fixando uma imagem do passado como ela se apresenta no momento do perigo ao sujeito histórico, alertando a classe trabalhadora da existência de uma “imobilização messiânica” dos acontecimentos, que pode se desenrolar tanto na redenção, caso seja salva a tradição, seus mitos e seu espírito, quanto na corrupção e trevas, caso a tradição, nesse caso tanto a história do trabalhismo quanto a história do Brasil, seja tomada pela conformidade e pelo interesse espúrio da classe dominante e projetos nefastos de poder e retrocesso material e espiritual.

Nesse caso em especial, tendo a própria história (também estória, fábula, mitologia, simbologia e teologia) como locus de disputa, o trabalhismo busca construir a possibilidade de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido, a redenção enquanto revolução social profunda. Mas o messias não vem apenas como libertador e redentor, vem também como vencedor do anticristo, pois o perigo deste ameaça tanto a existência da tradição libertadora como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Nesse caso a redenção não mais seria revolução, seria corrompida em contra-revolução, escravizando nosso povo e esquecendo a alma de nossos mortos.

Essa é a real natureza da batalha ideológica entre o Trabalhismo Brasileiro, que busca a revolução redentora por intermédio de nosso espírito histórico coletivo e símbolos, e da “Quarta Teoria Política” que busca a contra-revolução aprisionante, por intermédio da corrupção de nossos maiores símbolos. É a natureza de uma verdadeira Guerra Sagrada pela memória e pela possibilidade de redenção e revolução, mas mais do que isso, para não ser corrompida nossa tradição e para não ser concebível aventar a possibilidade desta ser utilizada por pessoas que não as merecem articular, não por ignorância ou desconhecimento, e sim por má-fé.

Exatamente por isso, conclamamos a todos os Trabalhistas que leram este presente texto até aqui para lutar uma batalha ideológica necessária, pois é relativa ao destino de nossa tradição e até mesmo, da própria possibilidade de futuro para esta. Uma vez corrompida a tradição, usada de forma equivocada, manipulada por farsantes, esta passará de um símbolo sagrado, de um instrumento de libertação, para símbolo de ódio, de desprezo do povo, pois terá sido utilizado como um instrumento de tirania. Quando isso ocorre, na maior parte das vezes, não existe retorno. Sem a sua tradição, memória, história, legado, o Trabalhismo perde sua razão de ser, e até mesmo pode deixar de existir.

Perspectivas para o futuro: O movimento trabalhista brasileiro e a disputa pela memória no centenário da Revolução de 30.

“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. ” Walter Benjamin, Teses sobre a história.

O filósofo russo, muitas vezes considerado o fundador do marxismo na Rússia, Plekhanov, tem como um dos pontos mais importante em sua obra o debate que contrapõe dialética e a metafísica, analisando respectivamente a primeira como lógica da transição e a segunda como lógica do que é estático. Como se, de forma mais simplificada ainda, a dialética fosse um filme, e a metafísica uma foto.

Para além de que evidentemente existe uma simplificação “pedagógica” desses conceitos, visto que filosoficamente é aceitável ponderar que Plekhanov escolheu um prisma bastante específico para analisar tais métodos de estruturação lógica do pensamento, também existe uma finalidade política. Isso se mostrar especialmente relevante para a esquerda brasileira entender nesse momento.

Pensamentos que primam pela lógica do que é estático, ou seja, a lógica da continuidade, quando aplicados à política, sempre são benéficos à classe dominante, pois em seu falso racionalismo, escondem justamente a capacidade de ação dos trabalhadores enquanto classe de se organizarem e mudarem as coisas. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, não teríamos Petrobras, Eletrobras nem nenhum direito trabalhista no Brasil, pois todas essas “conquistas” foram fruto da atuação ativa da classe trabalhadora. Vânia Bambirra, em sua análise do pensamento de Mao Zedong, resume perfeitamente tal raciocínio, e comentou sobre a lógica e visão de mundo metafísica:

“A concepção metafísica abrange um longo período histórico quer no ocidente como no oriente. É adotada e defendida de um modo geral pelas forças reacionárias que desejam se manter no mundo.” Conceito marxista de mudança social em Mao Tsé-tung, escrito por Vania Bambirra.

O que nos responde a lógica da transformação, a dialética, quanto a isso? Nos responde que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Ou seja, a força popular e a transformação social devem ser construídas material e teoricamente, e isso só pode ser feito a partir de mobilização e organização da classe trabalhadora e de uma crítica radical do que temos no presente momento, bem como finalmente uma teoria revolucionária para transitar de um presente inglório rumo a um futuro redentor. A lógica da transformação nos ensina que dos escombros do velho, nasce o novo, enquanto o velho ainda não morreu.

Nesse sentido, tal debate sobre a lógica da transformação e a lógica do que é estático, dentre muitas questões, também abrange centralmente o próprio debate sobre filosofia da história. Especialmente na reflexão sobre uma filosofia da história para transformar a realidade social e a própria história. Um grande mestre da Filosofia, na Universidade Federal Fluminense, um dia, disse algo que nunca podemos nos esquecer:

“Ninguém lembra de uma revolução, se ela não encontra lastro na memória popular, se ninguém se lembra, então essa revolução morreu.”

Pensemos nisso, também, sob os ensinamentos da filosofia da história de Walter Benjamin e sua descrição de como opera a dialética da lembrança e do esquecimento operada pela classe dominante. Não devemos morrer de pavor ao pensar no que nosso povo fará em 2030. Devemos trabalhar para contrapor a ideologia paulista, que aspira levar o Brasil de volta para a República Oligárquica, e sermos hegemônicos em interpretar a importância de 1930 em seu centenário. Isso não é trivial, e nem tampouco, deveria ser importante apenas para os Trabalhistas. Sobre isso, nos alertava Walter Benjamin:

“Tese XVI: O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única.” Walter Benjamin, Teses sobre a história.

Numa era em que Apolíneos, racionalistas que temem a paixão, em que Narcísicos, liberais de esquerda que só se apaixonam por sua própria imagem, e que Dionisíacos, que são a pura paixão reacionária e caótica do “ser” querendo organicidade, disputam a hegemonia do caos político no globo, demos escolher Kairós, o momento perfeito para se reverter um processo inglório e alcançar a eternidade construindo um novo futuro a partir de um passado que também é presente.

A análise de nossa situação nos leva direto ao problema. A questão de nosso tempo não é que nossa esquerda é “reformista”, mas sim que ela está aquém disso, e não tem capacidade de propor ou sequer vislumbrar um mundo novo, enquanto parece estar presa na fábula de “Fim da história de Fukuyama”. Embora existam críticas e propostas para tal no imaginário da esquerda, institucionalmente ela segue esse dogma a ferro e fogo. Mas e o modelo socialista para o Brasil do século XXI, e o socialismo com características brasileiras?

Como será possível chegar nisso, se a formulação institucional da esquerda brasileira quando chega ao poder na Nova República é obviamente neoliberal e implicitamente reconhece uma vitória do Ocidente e com isso um suposto direito dos países centrais em governar o globo? A esquerda brasileira precisa antes de tudo reencontrar sua essência em uma práxis que é ambígua entre reforma e revolução, a síntese de ambos. Encontramos na história política brasileira isso no brilhante exemplo de Leonel de Moura Brizola, Roberto Silveira, Darcy Ribeiro, Vânia Bambirra, Guerreiro Ramos e tantos outros da história de nossa cultura política.

Devemos assumir publicamente o compromisso de fortalecer e dar base teórica e prática para um movimento Socialista brasileiro que realmente compreenda a importância do centenário, que merece ser comemorado em 2030, com criticidade, e aprendendo também com os equívocos do processo que fundou o Brasil moderno e escancarou uma janela de oportunidade para a construção da Revolução Brasileira, processo este em disputa há mais de 90 anos contra a “contra-revolução preventiva”.

O que nosso povo morreu, sangrou, para construir no século XX não pode ser esquecido. Como Darcy Ribeiro dizia, o Brasil tem um sentido, mas quando não conhecemos nossa história e se não estamos conectados verdadeiramente a esse “espírito”, não é possível compreender tal sentido. Manter o fio da história, é revelar o sentido implícito do Brasil e do povo brasileiro, seu lugar de ser no mundo e na história do desenvolvimento da civilização humana.

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