A EDUCAÇÃO PÚBLICA E OS LIMITES DO NEOLIBERALISMO PROGRESSISTA.

Nelson
10 min readFeb 29, 2024

O Novo Arcabouço Fiscal, o lançamento do programa Escola em Tempo Integral, o Educa + e o futuro da educação pública brasileira.

Autoria: Daniel Albuquerque
Cedido para a equipe d’A coisa pública brasileira em 07/08/23

No dia primeiro de agosto do presente ano de 2023, um dia após o programa Escola em Tempo Integral ser sancionado pelo presidente Lula, foi lançado o novo título direto do tesouro de nome Educa +.

Muito embora este ainda seja um desconhecido para a maioria dos interessados na defesa da educação pública brasileira, — jovens e profissionais da área da educação — tudo leva a crer que tal título tenha relação não apenas com o programa Escola em Tempo Integral, mas também com o Novo Arcabouço Fiscal e com uma, tímida e não divulgada, “nova forma de financiamento” do estado brasileiro.

Para entender e analisar melhor a importância dessa questão — extremamente divulgada em veículos ligados ao “mundo financeiro” — é necessário observar esse problema relacionado ao setor educacional pelo prisma da ciência política, a partir de três dimensões: o poder, a economia política, e como estes dois primeiros fatores se relacionam com a disputa pelo projeto educacional que será executado pelo Estado brasileiro.

Para enfim iniciarmos nossas reflexões, também se faz necessário uma pequena contextualização histórica, pois não chegamos ao ponto em que estamos por acaso, e sim por uma série de causas que se somaram durante determinado período.

Breve contexto histórico:

Desde o início dos anos 2000, após um intenso período de ataques contra a educação pública na década de 90, ocorreu um curioso duplo fenômeno.

Se por um lado foi possível observar uma melhoria na situação da educação pública em relação ao período anterior — sobretudo no que diz respeito às universidades públicas e sua interiorização — o crescimento do setor educacional privado, tanto na educação básica quanto na educação superior, foi avassalador.

Para além do crescimento da influência política de figuras e grupos de poder que controlam tal setor econômico, este período foi marcado pela implementação de inovações institucionais de ideário neoliberal — ainda que com verniz progressista — na resposta para o problema do acesso ao ensino superior.

Avança a implementação prática da concepção de que o Estado-Nacional não irá cumprir diretamente sua obrigação constitucional de prover educação pública em todos os níveis para seus cidadãos.

Portanto, quanto ao ensino superior, passa a mediar o acesso e o pagamento de seus cidadãos a rede de ensino superior privado, seja com bolsas ou por empréstimos intermediados com bancos públicos.

Ao fazer isso, o Estado-Nação aprimora a terceirização gradual da tarefa de receber o maior número de estudantes que concluíram o Ensino Médio e outros aprovados pelo ENEM e outras avaliações de ingresso no ensino superior.

Repassando, ainda que indiretamente, quantias de recurso público para o setor educacional privado, o privilegiando como parte da estratégia de desenvolvimento econômico nacional.

Tal modelo em processo de formação, embora tenha encontrado o primeiro grande obstáculo já no início da década de 2010, — com a crise política gerada pelos limites do neoliberalismo progressista iniciada em idos de 2013 — demonstrou suas principais fraquezas quando exposto à crise econômica. Esta, fruto da desaceleração chinesa no pós-crise econômica mundial de 2008, combinada a própria crise política interna.

Neste ponto, simultaneamente, as Universidades Federais e a educação de base começaram a ter problemas mais graves com recursos, ainda que não no mesmo nível dos dias de hoje.

Quanto ao setor privado, é nesse período que se inicia o endividamento em massa de parte de nossa juventude. Foi também, não por acaso, o período que iniciou o último grande ciclo de ocupações do movimento estudantil nas universidades e escolas públicas.

Com o golpe parlamentar de 2016, o grupo político ultra-liberal — com uma visão de mundo radical quanto a economia política e a organização do Estado — assumiu o poder e iniciou, contra a vontade popular e contra o voto, a implementação do programa “Ponte para o Futuro”.

Com isso, foi implementado, além de uma série de medidas neoliberais, o famigerado teto de gastos.

Desde então, a educação tem sido vítima de uma série anual de contingenciamentos de recursos para satisfazer o “equilíbrio fiscal”. Tal problema chegou ao seu ápice durante o governo Bolsonaro — iniciado em 2018 — e durante a pandemia de 2020, a qual foi aproveitada pelos neoliberais para pautar algumas de suas diretrizes educacionais, como a implementação progressiva do ensino remoto como forma de “cortar custos”.

Nesse sentido, cabe destacar, muitas Universidades Federais passaram por um processo de desfinanciamento e se tornaram *economicamente dependentes do ensino remoto*, uma vez que foi economicamente difícil retornar plenamente ao nível de funcionamento presencial pré-pandemia, tendo em vista a entrada contínua de novos estudantes e a redução dos recursos.

Foi exatamente neste momento histórico que o atual governo assumiu. Exatamente por isso, cabe ser justo, antes de avançar na análise e de finalizar esta contextualização inicial.

O contingenciamento vivido atualmente no setor da educação — que no final de julho e começo de agosto deste ano travou o orçamento do Ministério da Educação — faz parte de tal processo de cortes relacionados ao “teto de gastos” desde 2016 e, portanto, não é exclusivamente “culpa” deste atual governo.

Ainda que, como veremos adiante, medidas já poderiam ter sido tomadas quanto a tal questão anteriormente e o Novo Arcabouço Fiscal aprovado pelo atual governo — que passará a vigorar a partir do próximo ano — também poderá ser igualmente restritivo e ter um duro impacto contra o futuro da educação pública.

Sobre o título direto do tesouro “Educa +” e sua função “oculta” de nova ferramenta de financiamento do Estado brasileiro:

O título direto do tesouro Educa + foi anunciado pelo Secretário do Tesouro, Rogério Cerón, pela primeira vez no dia 27 de abril do presente ano, no mesmo período em que era elaborado o Novo Arcabouço Fiscal. Segundo Cerón, o Educa+:

“É um título educacional voltado pra você ir formando uma poupança pouco a pouco e depois, quando o seu filho tiver com 18 anos, ele poder ter mensalmente um valor durante 5 anos pra pagar mensalidade da universidade ou pagar os custos desse período”

À primeira vista, quando exposto dessa forma, do ponto de vista do usuário, o Educa + não parece ser nada de mais, não obstante, seja similar a ferramentas de financiamento de ensino superior privado dos EUA, um modelo de ensino amplamente rejeitado pela população brasileira.

Tal iniciativa traz consigo — e em sua propaganda — uma lógica atrelada ao neoliberalismo que anda em moda, de “educação financeira” como panaceia de todos os males, utilizada para culpar e penalizar a população quando o Estado brasileiro se omite e não cumpre suas obrigações constitucionais.

É importante salientar que o Educa + não foi criado apenas para ser utilizado como forma de pagamento de mensalidades para o ensino superior privado.

Sua propaganda nos veículos de comunicação ligados ao mercado também traz que o Educa + deva ser um “investimento planejado” para que seu filho possa se sustentar mesmo na Universidade Pública. Ou seja, um indício de desfinanciamento do ensino público superior, de que o Estado-Brasileiro pode abdicar de seus deveres quanto a assistência e permanência estudantil a fim de “cortar gastos”.

Além disso, tomemos nota, — conforme amplamente divulgado — que o valor relativo ao benefício final do Educa + ao se pagar o mínimo é calculado para um curso de ensino remoto em instituição privada. O que pode não ser o caso, mas parece dar continuidade, enquanto política de Estado, a lógica implementada por Bolsonaro de intensificar a adesão ao ensino remoto.

Nesse sentido, é importante que apresentemos um dos idealizadores do Educa +, Rogério Cerón, que também parece ter sido uma das cabeças centrais por trás do Novo Arcabouço Fiscal.

Indicado pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad, já participou da condução da área econômica de Haddad e Bruno Covas (PSDB) enquanto prefeitos da capital paulista e de Geraldo Alckmin (PSDB) enquanto Governador do Estado.

A criação do título Educa +, uma mudança institucional significativa, parece estar ligada ao Novo Arcabouço Fiscal e também ao programa Escola em Tempo Integral. Para começar a entender isso, cabe observar o Educa + não pelo que ele nos mostra em sua superfície, mas em seus detalhes.

Como todo título direto do tesouro, o Educa + não foi criado apenas para cumprir função social x ou y. Ainda que não seja apresentado dessa forma em nenhum material de propaganda e em nenhuma revista do mundo financeiro, o Educa + também é uma tentativa de criação de nova fonte de financiamento para o Estado brasileiro.

Uma fonte mais rentável, diga-se de passagem, por ter juros fixados pelo próprio Estado quando na emissão do título. E como tal, esta não foi pensada por acaso, pela boa vontade ou sabedoria de um gestor, mas a partir de uma estratégia e segundo uma demanda social presente, ou gerada para o futuro.

Ocorre que parece existir um grave “problema”. No presente caso, a fonte de financiamento do Estado brasileiro — que não foi discutida com a sociedade — se torna mais vantajosa conforme o nível de desfinanciamento, sucateamento e privatização do ensino superior.

Quanto mais jovens desassistidos pelo Estado brasileiro em sua obrigação de prover ensino superior público de qualidade com políticas de assistência e permanência estudantil, mais famílias ingressarão nesse sistema de financiamento coletivo, e serão “educadas financeiramente” a se “planejar”.

Sobre o Novo Arcabouço Fiscal, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), o programa Escola em Tempo Integral e sua possível relação estratégica com o Educa +:

Se o atual governo não tem “culpa” pelo atual contingenciamento, como deixamos claro anteriormente, pode vir a ter nos próximos.

Como destacado pelo economista David Deccache, o Novo Arcabouço Fiscal, embora seja menos rudimentar que o teto de gastos, — justamente por ser mais flexível e bem redigido — pode se provar uma regra fiscal muito mais restritiva do que o próprio teto de gastos aprovado por Temer em 2016.

O gráfico abaixo demonstra como os investimentos do governo teriam sido muito inferiores se fosse seguido a regra do Novo Arcabouço Fiscal já naquela época. Isso significa que teríamos menos escolas, menos universidades, maior domínio do setor de educação privado.

Para que isso não ocorra, o Brasil precisa crescer em uma proporção grande e intensa, o que não parece ser nem de longe a intenção do BACEN, que controla a taxa de juros, privilegiando o rentismo e deprimindo as expectativas de crescimento da economia brasileira.

Ao que tudo indica, portanto, existe uma expectativa de que os investimentos ficarão mais escassos e que o conflito para a distribuição dos recursos se tornará mais intenso e agressivo.

Não obstante, por conta da forma como está sendo levado adiante o Novo Arcabouço Fiscal, o FUNDEB acabou por ficar, ainda bem, de fora do teto, mas isso não significa que fique livre de restrições, nem que seja a única fonte de recursos da educação básica.

Neste momento está se criando artificialmente a condição perfeita para uma batalha orçamentária entre o custeio do ensino básico e o custeio do ensino superior por dentro do teto.

O argumento neoliberal nos últimos anos no Brasil é de que devemos privatizar as universidades para custear a educação integral até o ensino médio. Isso esteve presente nas diretrizes de Temer e Bolsonaro sobre educação

Embora isso seja apenas o ponto de vista ideológico dos neoliberais, está sendo construída uma situação em que isso poderá se tornar, artificialmente, um problema real. Nesse sentido devemos observar a aprovação do programa Escola em Tempo Integral.

Enquanto trabalhistas e socialistas — que lutam há muitos anos pela educação em tempo integral — evidentemente não podemos ser contra de forma alguma. Mas cumpre destacar que, dentro desse contexto, a aprovação do programa Escola em Tempo Integral cria uma obrigação de investimento para o Estado-Brasileiro, especialmente na educação até o nível médio.

Dessa forma, o conflito na distribuição de recursos entre o ensino superior e o ensino básico deverá ser progressivamente resolvido por força de lei pendendo para o ensino básico, existindo então uma tendência explícita ao desfinanciamento do ensino superior público, visto que não será possível financiar o primeiro apenas com o Fundeb

É dentro desse panorama, e parece ser exatamente nesse sentido estratégico, que foi pensado o novo título direto do tesouro, o Educa +.

O poder, a economia política e o futuro da educação brasileira:

Todos esses processos estão ocorrendo, mas a maioria de nós, por mais envolvidos com o tema, não sabemos de boa parte sobre o tópico, e não temos informações suficientes.

Como se sabe, na ciência política, quando se estuda o conceito de “poder”, se estuda a possibilidade da tomada de decisões. Nesse caso, decisões parecem estar sendo tomadas em um sentido estratégico de longo prazo, sem o debate com a sociedade e com as categorias envolvidas.

Diversas questões pairam sobre a natureza ideológica da economia política que está sendo seguida. Da mesma forma, uma imensidão de dúvidas relativas a aspectos operacionais também se tornam inescapáveis pela falta de informações públicas.

Para onde irá o recurso arrecadado? Para um fundo? Esse recurso será usado para reinvestir em educação? Ou irá para o orçamento, sujeito ao teto e será utilizado para cobrir despesas financeiras passadas? O que isso representa para o futuro da educação brasileira? É esse o rumo e sociedade que almejamos construir?

Se faz necessária, portanto, a mobilização dos setores relacionados ao tema — isto é, jovens, profissionais da área e defensores da educação pública — para levantar informações e estarmos atentos a possíveis desdobramentos.

Fato é, parece existir um novo rumo estratégico para equacionar o problema do financiamento para o Estado brasileiro.

Iniciativas como o Educa + e análogos demonstram que existe uma tentativa racional de mudar a fonte do financiamento da dívida pública, se utilizando de uma demanda artificial gerada pela privatização ou desfinanciamento de serviços públicos, e a integração de pessoas desassistidas em sistemas de captação coletiva mediante venda de títulos públicos.

Para além de apenas resistir ao plano dos que almejam destruir a educação pública brasileira, devemos pensar em nosso próprio modelo e estabelecer internamente em nossos espaços de militância política uma crítica ao que está se projetando da educação pública brasileira, não auxiliando discursiva ou intelectualmente com qualquer oportunista e preparando nossa militância para defender e pautar uma posição e um projeto que impeça que o futuro que estão criando seja possível.

FONTES:

1: Informações Educa + | https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/08/01/tesouro-educa-entenda-como-vai-funcionar-o-titulo-publico-para-financiar-estudos.ghtml

2: Contingenciamento dos recursos de educação | https://www.poder360.com.br/educacao/mec-faz-corte-de-r-332-milhoes-em-educacao-basica-e-superior/

3: Informações Educa + [2] | https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/educacao/audio/2023-08/governo-lanca-titulo-publico-educa-para-financiamento-de-estudos

4: Novo Arcabouço Fiscal, análise econômica | https://www.brasildefato.com.br/2023/04/03/arcabouco-fiscal-e-regra-que-podeser-cumprida-sem-manobras-diz-economista

5: Programa Escola em Tempo Integral | https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/07/11/senado-aprova-criacao-do-programa-escola-em-tempo-integral

6: 2016, o ano das ocupações estudantis | https://epoca.globo.com/educacao/noticia/2016/12/retrospectiva-2016-o-ano-em-que-alunos-tomaram-escolas.html

7: Alunos do Fies acumulam 11 Bilhões em dívidas | https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/03/07/inadimplentes-do-fies-acumulam-r-11-bilhoes-em-dividas-atrasadas.ghtml

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